“Lá vem a Renata falar de bicicleta”
Aos 71 anos de idade, Renata Falzoni agora é vereadora da maior cidade do país. É o início de uma nova fase. Porém, não dá para falar que a política é uma novidade para Renata Falzoni. Arquiteta, Fotógrafa, Jornalista e Cicloativista, ela assume o cargo público depois de quase 30 anos da primeira tentativa, em 1996. De lá para cá, ela consolidou sua imagem como uma marcante personagem da Mobilidade Urbana.
Uma referência para todo o mundo da bicicleta – veículo com o qual ela visitou mais de 33 países e produziu conteúdo para inúmeros canais de comunicação. Aliás, no caminho, desenvolveu seu próprio canal, o Bike É Legal, que hoje conta com mais de 400 mil inscritos no Youtube. Ainda nos primeiros dias como “vossa excelência”, Falzoni conversou com a Aliança Bike sobre o que espera deste novo momento, sobre a mobilidade em SP e do susto que vai deixá-la longe dos pedais por algum tempo. Confira.
Aliança Bike: Renata, como tem sido o gosto desses primeiros dias como vereadora? No meio de tantos planos, você foi parar no hospital?
RF: Nós tivemos uma catarse enorme quando conseguimos essa vitória. Foram quatro tentativas até entrar. Tivemos que ter muita resiliência. E nós ouvimos a porteira batendo. Sabe quando você tá na trilha e escuta a porteira fechando ali atrás…pah! Não fui a última, mas teve emoção. Depois que a campanha acaba, despenca tudo, né? Eu luto contra uma hérnia de disco há 35 anos. Ela soltou e eu tive que fazer uma cirurgia. Deu tudo certo. Entretanto, está sendo um trabalho mental enorme. Eu só vou poder pedalar daqui um tempo. E isso me frustra muito. Até pensando na minha imagem como vereadora. Eu tomei posse no dia 1º e a minha equipe agora, no dia 6º. Chegou todo mundo de bicicleta. Menos eu (risos). Eu nem me reconheço obedecendo as ordens dos médicos e fisioterapeutas nessa recuperação. Mas, estou fazendo tudo certinho.
Naquela época [1996], o cicloativismo era tratado como ‘café com leite’. E eu queria entrar em campo. Não aguentava ver nossos pedidos guardados no fundo das gavetas
AB: Quando você percebeu que o cicloativismo era um ato político e que você precisava entrar de cabeça nesse mundo?
RF: Isso já estava muito claro para mim na minha primeira tentativa, em 1996. Nós precisávamos jogar o jogo. Usando uma expressão antiga, naquela época, o cicloativismo era tratado como ‘café com leite’. E eu queria entrar em campo. Não aguentava ver nossos pedidos guardados no fundo das gavetas. Porém, a experiência em 1996 foi tão ruim que eu me reinventei. E decidi que eu iria focar meu ativismo através da comunicação. Eu já tinha uma abertura importante na rádio, na TV. E me entreguei em inserir a bicicleta na minha rotina como repórter. Fosse comigo pedalando para os eventos, as pautas, mas também de formas subjetivas, indiretas…Foi um ativismo que me permitiu exercitar o olhar de arquiteta-urbanista pelo mundo. Foram 33 países, 4 Olímpias e 3 Copas do Mundo. Sempre de bicicleta. Pude notar as mudanças, as iniciativas, as escolhas que as cidades tomaram na mobilidade urbana. Fui somado tudo isso. Eu não deixei de fazer as coisas impulsivas que eu fazia nos anos 90, mas sinto que ganhei muito mais conhecimento nesse longo caminho até ser eleita.
AB: Você se tornou melhor. Dá para falar o mesmo da política e do cicloativismo?
RF: Os coletivos são muito mais fortes. Bem orientados. E nisso eu destaco o valor do Daniel Guth (que assumiu como chefe de gabinete) para a utilização dos dados e das pesquisas no direcionamento dos esforços de cicloativismo. É um processo em constante aprendizado, mas com mudanças nítidas. Quanto à política, eu acho que nós já tivemos momentos melhores em São Paulo, que passou pelo Kassab, chegou ao auge no governo do Haddad e depois foi minguando. O Dória partidarizou demais o cicloativismo, os ciclistas e isso impregnou os órgãos gestores. Hoje, os números todos são piores. Aumentou consideravelmente a quantidade de gente que morre no trânsito em São Paulo. E isso me levou a entrar com um pedido no Ministério Público antes mesmo de assumir. E isso é um grande retrocesso em cima de um esforço de mais de 30 anos.
Nós vamos conseguir conscientizar as pessoas que o cicloativismo não é uma coisa de esquerdista. É algo que faz bem para todo mundo. Quem usa no transporte, no lazer, no esporte
AB: O cenário agora é pior?
RF: Sabe qual o problema? Não está pior. Está consolidadamente pior. Vamos ter que quebrar paradigmas que já tínhamos superado há 15 anos, na gestão Kassab. Hoje temos leis que não são cumpridas. Os gestores não acreditam na Mobilidade Urbana. Por mais que seus eleitores discordem. As pessoas querem melhores soluções de deslocamento. Ônibus, trem, bicicleta, calçadas…E nós vamos precisar trazer essa população de volta para o debate. Então, boa parte do nosso esforço será documentar e orientar a cidade de coisas que não são cumpridas ou não são realizadas por puro desconhecimento. Há verbas destinadas para melhorias nas ciclovias paradas por abandono de gestão.
AB: O maior desafio do seu mandato vai ser lembrar as pessoas do que é o certo?
RF: Vai além disso. Acho que nosso maior desafio é tirar o preconceito inicial de que somos aquela “turma do contra”. E a gente vai conseguir fazer isso. E eu sempre uso no plural porque eu não estou sozinha. É um ótimo time comigo nessa luta. Aliás, uma das coisas mais empolgantes é poder contar com esse time dedicado. Lutas que sempre travamos – e eu me incluo – de forma paralela aos outros compromissos profissionais, agora é nosso trabalho. Isso é incrível. Enfim, nós vamos conseguir conscientizar as pessoas que o cicloativismo não é uma coisa de esquerdista.
É algo que faz bem para todo mundo. Quem usa no transporte, no lazer, no esporte. Simplesmente, quem não tem mais coragem de deixar o filho pedalar. Ou quem não aguenta mais mofar em um carro. As pessoas precisam sentir que a cidade melhora quando se locomovem de forma ativa. Quando elas viajam, elas adoram. Fazem vídeo lá em Paris. Não quero parecer iludida, mas com muito tato, nós vamos envolver essa turma.
AL: E quem já está envolvido? O que o seu eleitor-ciclista pode esperar do seu mandato?
RF: (risos) Primeiro vamos detalhar quem é esse eleitor. Tem o ciclista de estrada, o do mountain bike, o urbano…e o que eu não consigo atingir ainda, que é o entregador. Mas, para todos eles, a mensagem é igual. Confiem em mim, pois eu sou ciclista mesmo. Estar fora da bicicleta esses dias me desespera. Só peço muita calma nessa hora. Nós não vamos conseguir avançar tudo o que gostaríamos nessas políticas públicas. Agora, lutaremos incansavelmente. Nós vamos produzir muito. Vamos fazer muita pressão. E eu desconfio que muitos vão achar mais barato agir do que ficar ouvindo nosso barulho.
Por exemplo, nós conseguimos nesses primeiros dias colocar na Lei Orçamentária, mesmo que muito pouco, uma rubrica com verba para as Áreas de Proteção ao Ciclismo de Competição e também para a Trilha Interparques de Cicloturismo (no extremo sul da cidade).. Não quer dizer que vamos conseguir. Porém, já está previsto. Antes nem tinha essa possibilidade. No campo da mobilidade, principalmente, nós vamos documentar tudo o que está acontecendo: os buracos, os postes, ciclovias que foram estreitadas. A questão dos bicicletários, que estão desaparecendo. Pensando no cicloturismo, pensamos que ele pode ser muito melhor promovido na região Sul da cidade. Nós não separamos a bicicleta das políticas de mobilidade ativa, então, calçada, interligação com coletivos, tudo isso está no nosso radar.
eu acho que tudo deveria ser pensado assim. Vai construir uma ponte, um hospital, um bairro: onde está a bicicleta? Essa pergunta tem que ser feita sempre.
AB: Renata, como é iniciar uma nova fase – uma carreira – aos 71 anos?
RF: Eu brinco que estou na minha décima infância. E, sinceramente, é muito legal. Normalmente eu estaria me aposentando. Mudar para praia, para o interior. Não dá. E eu tenho para mim a certeza de que esse momento vai ser lúdico. Nesses poucos dias de mandato eu já vivi uma saia justa e a idade me permitiu deixar muito claro que eu estou chegando agora, mas não levo desaforo para casa.
AB: Você sente que essa energia é inspiração para outras mulheres e, principalmente, cicloativistas?
RF: Olha, eu aprendo muito com as mulheres do ativismo. Sobretudo, se você pensar que no ciclismo em geral, elas representam 10%, no cicloativismo elas são 50-50. Eu ouço muitas mulheres me dando feedback positivo, principalmente, no “Bike É Legal”. Isso é gratificante, inspirador e reflexo de um trabalho. Por mais que não seja a minha busca. A bicicleta tem um papel fundamental no empoderamento feminino e tem ótimos livros sobre isso. Influenciou lá no passado, na virada do século XX. Permitiu a mudança no vestuário, com toda a certeza no comportamento. Eu vivi isso quando andava de bike na minha juventude pelos quais eu não poderia passar a pé sozinha. A bicicleta me deu direito à cidade nos anos 70. E, hoje, também é assim. Os grupos de pedal formados só por mulheres é um ótimo exemplo disso.
AB: Para finalizar, qual é o lugar da bicicleta em São Paulo?
RF: A bicicleta tinha que estar em uma política transversal. Secretaria de Saúde, Secretaria de Educação, Esporte, Urbanismo…em todas as políticas públicas ela deveria estar inserida. Pensar a bicicleta em tudo. Imagine se as escolas trabalhassem o uso da bicicleta. E nem estou falando só do bonde, não. Imagina desenvolver a coordenação motora na aula de educação física com uma bike. Então, eu acho que tudo deveria ser pensado assim. Vai construir uma ponte, um hospital, um bairro: onde está a bicicleta? Essa pergunta tem que ser feita sempre. E, na Câmara será assim: “Lá vem a Renata falar de bicicleta”. E eu vou mostrar que ela encaixa. Ela vai encaixar.