Eletrificação das bicicletas: desafios e perspectivas por trás da evolução das baterias
Nas últimas semanas, um vídeo vindo da China assustou os brasileiros com cenas de uma incêndio dentro de um elevador, quando um homem transportava uma bateria de bike elétrica. Vale ressaltar que tratava-se de uma bateria adulterada, como depois a perícia local verificou. O homem era inclusive conhecido nas redes sociais por postar vídeos com e-bikes “tunadas”, com alterações que oferecem sérios riscos à segurança de todos.
O debate sobre baterias elétricas é atual e necessário. Trata-se de um assunto amplo que alcança diferentes setores e que se populariza na mesma medida que os dispositivos e veículos elétricos ficam mais acessíveis.
A Aliança Bike acredita no potencial para saúde, mobilidade e sustentabilidade das bicicletas elétricas e trabalha pela ampliação do seu acesso no Brasil, o que inclui iniciativas pela sua produção, venda e uso.
Para contribuir com o debate sobre as políticas em torno das bikes elétricas e suas baterias e munir a sociedade de informação qualificada sobre o tema da eletrificação da mobilidade, organizamos um bate papo com dois especialistas no assunto: o professor da Unicamp, Hudson Zanin, e o engenheiro Ricardo Frazzato, sócio da empresa Ipedal associada à Aliança Bike e membro do nosso Grupo de Trabalho sobre bicicletas elétricas.
A seguir você confere as principais ideias elaboradas por eles em um bate-papo virtual:
Qual é o papel de cada um – pensando em governos, universidades, empresas e organizações – nesse esforço coletivo pela ampliação da eletrificação?
Hudson Zanin (Unicamp): Cada um deve atuar dentro da sua missão e a nossa como universidade é formar gente e desenvolver protótipos, tecnologias, mas não produtos, ou seja, a universidade chega até certo ponto, depois nós precisamos de empresas que possam desenvolver esses produtos com vistas no mercado.
A Unicamp tem atualmente um conjunto de projetos para desenvolver e estudar materiais ativos, buscando superar falhas e otimizar seu funcionamento. Estamos indo para a segunda fase de investimentos para a ampliação do centro de manufatura de baterias, validação e certificação que no ano que vem deve inaugurar um hub de baixo carbono chamado Low Carbon Hub para estudos essenciais para apoiar a transição energética.
Qual a relação entre as fontes de energia usadas para a fabricação e carregamento das baterias e a transição energética que pretendemos como país e como planeta?
Hudson Zanin (Unicamp): Estamos estudando estratégias de transformações químicas que consideramos essenciais para a transição energética, como por exemplo transformar o metano em hidrogênio e depois em eletricidade. É o tipo de tecnologia fundamental para o Brasil nesse processo de reindustrialização, que a gente enxerga que vai acontecer nos próximos anos e que pode aproveitar matrizes limpas, o que possibilita uma pegada de carbono ainda mais baixa – diferente do que acontece em países como a China, onde 90% da energia vem a partir de fontes fósseis.
É até um absurdo pensar que ao utilizar uma bicicleta ou carro elétrico, você pode até não liberar carbono no escapamento, mas a bateria em si tem uma pegada muito alta dele – a gente quer corrigir esse problema com uma matriz limpa de energia, além de gerar emprego.
Quando o tema é a segurança para o transporte e o uso das baterias, o que precisa ser feito?
Ricardo Frazzato (iPedal): Quando a gente pensa na ponta com os consumidores finais, existe de fato uma resistência porque muitos clientes têm desconhecimento sobre riscos e benefícios da eletrificação, afinal são equipamentos com alto custo. Um exemplo simples seria a roçadeira, muitos profissionais ainda escolhem uma a combustão, pois as elétricas têm questões que ele desconhece e mesmo sendo mais simples e mais vantajosa, ele ainda escolhe a roçadeira a gasolina.
O caso relatado no vídeo chinês que circulou expõe o risco alto de tirar dispositivos de proteção e modificar baterias e a gente vê isso acontecer também aqui no Brasil. Nós soubemos de um caso no interior de São Paulo, de uma bicicletaria que, sem saber, atendeu um ciclista com uma bateria alterada e isso gerou um incêndio na loja.
A prática de guardar a bateria descarregada por longos períodos e depois querer a qualquer custo reativá-la, pode levar uma pessoa a retirar um sistema de segurança sem nem se dar conta do alto risco gerado para si e para os próximos.
Em que pé está a regulamentação das baterias atualmente no Brasil e no mundo, como funcionam as testagens dos produtos?
Hudson Zanin (Unicamp): Sinto que o maior problema está no ambiente político, porque não temos definições de pontos importantes para a regulamentação, o que seria essencial para dar segurança também aos fabricantes e empresas envolvidas. O que pode ou não ser feito precisa ser discriminado para que também as responsabilidades possam ser apontadas. Nesse sentido, a academia e os órgãos de regulamentação como o Inmetro precisam criar essas regulamentações ou no mínimo termos de conformidade para a verificação dessas baterias, para que elas cumpram o que prometem. A falta de regulamentação é ruim para todo o ecossistema.
A Unicamp vai começar a fazer testes elétricos, contemplando aspectos de vibração, perfuração e impacto, tendo em vista o uso de baterias em satélites, por exemplo, que precisam durar no espaço 30, 40 anos e não podem ter que voltar para trocar a bateria. O Inmetro vai estar conosco no novo centro de manufatura de baterias, validação e certificação.
Mas vale novamente reforçar que a Unicamp não é uma indústria, por isso que a gente foi conversar com o Instituto Eldorado pois são esses atores que têm mais facilidade de contratar técnicos e apoiar mais amplamente com recursos financeiros de incentivo, até porque não existe viabilidade econômica ainda, não temos um ecossistema montado para ter retorno de um investimento como esse agora, mas quem estiver na vanguarda terá a oportunidade de dominar o mercado. É preciso articular diferentes agentes para trilhar o caminho da certificação, melhor que fosse com um pool de empresas interessadas em apoiar esse processo.
Ricardo Frazzato (iPedal): Cabe a nós como associações da sociedade civil, falando agora como Aliança Bike, propor medidas para mitigar os riscos, sejam ambientais ou de segurança física, com pesquisas e legislações, regulações. A gente tá nessa fronteira do impacto e vemos uma concorrência desequilibrada, muitas vezes com produtos de baixa qualidade que chegam no país, embora essa realidade esteja mudando, até porque os consumidores não estão mais aceitando produtos de baixa qualidade como aceitavam há cinco anos. Mas a gente vê crescer um desejo de consertar equipamentos e aí surgem “os amigos que sabem mexer” que acabam por desabilitar o sistema de segurança levando a incêndios.
A gente deveria ter a construção de um caminho de especificação dos produtos, de testes para verificação do cumprimento dessas especificações, organismos/organizações independentes que pudessem fazer laudas dessas baterias para que se um dia acontecer um acidente ter um caminho para qual recorrer. Nesse sentido, eu vejo um vácuo institucional no mundo inteiro e não seria difícil ocupar esse espaço com ações positivas.
No nosso segmento de bicicletas ainda é difícil até de falar e engajar sobre o tema, porque nem nos países sede das grandes marcas essas questões estão resolvidas – eles não têm modelos bem sucedidos de como lidar – e a gente fica na falta de referências internas e externas para dar massa crítica a essa discussão. Hoje temos uma norma básica de frete com a UN38, se não me engano é o único teste que as baterias passam para embarcar aqui pro Brasil – na minha visão ele já seria capaz de detectar um problema como o que ocasionou o incêndio no elevador chines do vídeo.
Como anda a reciclagem das baterias e já poderíamos considerar que existe um ecossistema formado em torno delas?
Hudson Zanin (Unicamp): No passado, a destinação das baterias velhas era um problema, mas hoje todo mundo quer. Mesmo que seja lixo, tem empresas que já estão comprando essas baterias usadas que antes eram doadas. Mas vários atores da sociedade precisam trabalhar para ajudar a criar um ecossistema. Ainda que não haja viabilidade econômica, a legislação precisa garantir que esse caminho seja feito, pois alguém tem que se responsabilizar, sobretudo do ponto de vista de uma transição energética verdadeiramente limpa.
Quem é responsável pela bateria sem uso e sua destinação correta, quem fabricou fora, quem montou no Brasil? Hoje não temos essa regulamentação. Como universidade podemos ajudar na sensibilização sobre o tema nos tomadores de decisão.
Ricardo Frazzato (iPedal): Na iPedal nós temos um programa de cashback para incentivar o retorno dessas baterias, que já na fábrica são desmontadas. Em média, 80% das células têm capacidade para uma segunda vida – a gente revende essas células e elas são reaproveitadas em outros sistemas menos críticos – e 20% vão para o nosso parceiro de lixo tecnológico, que é quem administra o encaminhamento, mas hoje ele não tem um output final para o lítio e por isso estoca num fosso aprovado pela CETESB (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo). Alguma coisa deste lítio ainda retorna para a indústria farmacêutica, que é o principal comprador no brasil, ou seja, ele retorna pra fazer remédio e não outras baterias, mas é um consumo baixo, seguido pela indústria de lubrificantes. Mas a gente ainda não tem essa circularidade completa por falta de uma fábrica de baterias no Brasil para fechar esse ecossistema.
Pensando na popularização e acessibilidade dos veículos elétricos, o que o consumidor pode esperar?
Hudson Zanin (Unicamp): Pensando na perspectiva do cliente, o que é importante ser ressaltado é que a tecnologia está evoluindo, ficando mais barata e formando um ecossistema mundial que possibilita que seja mais popular, eficiente e acessível. Hoje o mercado chinês domina 77% da produção mundial, mas essa realidade está mudando com a indústria europeia ganhando força. Os Estados Unidos, por sua vez, são protecionistas e vêm barrando a entrada de produtos chineses, que tendem a vir para o mercado brasileiro popularizando o acesso ainda mais.
Ainda assim, aos poucos os veículos elétricos importados vão passar a pagar mais imposto, então existe essa janela de oportunidade para a produção nacional que seguirá com isenções. Eu vejo um status conectado ao ter um veículo elétrico, os e-carros hoje já são 6,5% da frota nacional, mesmo custando a partir de 200 mil reais. Nesse cenário, imagino que a gente vá começar a ter pontos de abastecimento e um ecossistema vinculado a esses veículos. Mas é claro que o cliente quer saber quando vai ficar mais barato – a resposta é que já está ficando e quanto mais emprego os setores de elétricos gerar para termos renda para consumir melhor, mas para isso depende de um ecossistema bem amarrado.
Ricardo Frazzato (iPedal): As baterias têm evoluído muito, a cada seis meses as fábricas anunciam novos modelos, aumentam 10% a capacidade no mesmo volume, então eu sinto que existe sim um nível de incrementação acontecendo em vários níveis. Mas eu quero lembrar que com uma bateria elétrica de carro dá para fazer 200 para bicicletas. A curva da representação das e-bikes no mercado europeu é enorme e já supera a das convencionais – o cliente fica feliz com a experiência de pedalar uma bike elétrica, mas ainda não com a vida útil do produto, mas falta uma educação para o uso também, para melhorar essa relação com o produto. A verdade é que nós estamos tendo a mesma discussão de quando migramos para os veículos a combustão – trazer a cadeia para perto do mercado consumidor é benéfico em todos os aspectos.