A conexão duas rodas entre o Saara e a Amazônia
O cicloturista e documentarista Nestor Freire percorre o mundo há mais de uma década, utilizando a bicicleta como ferramenta de conhecimento, conexão humana e boas histórias. Depois de 25 anos no setor corporativo, ele decidiu transformar a paixão por pedaladas em estilo de vida. Desde então, já cruzou 27 países, guiado pelo princípio que se tornou um mantra em suas viagens: “não é só sobre lugares, mas principalmente, sobre pessoas”.
Nestor embarca nesta terça-feira (9/9) para Portugal, onde inicia mais uma etapa do Giraventura, seu projeto de 15 anos pedalando pelo mundo. Antes disso, a Aliança Bike bateu um papo com ele. Sua inspiração para esta cicloviagem está em uma das mais curiosas conexões entre o Brasil e a África.
“Eu queria juntar esses mundos. Quando eu conheci a história de Mazagão, fiquei tão empolgado e percebi que esse seria meu novo objetivo”. Nasceu o projeto “Entre Selvas & Areias”. Em sua expedição dividida entre 4 estágios (pouco mais de 4.000 km), Nestor aposta no diálogo entre ecossistemas, culturas e pessoas, traçando paralelos entre a força da resistência humana na floresta e no deserto.
Uma História que Cruza Continentes
A cidade de Mazagão foi uma antiga colônia portuguesa no norte da África. Ela foi transferida pelo Império Português para o Amapá no século XVIII, dando origem a Mazagão Velho. O local preserva até hoje tradições que remontam ao período colonial, especialmente nas festas religiosas e nos costumes de origem africana e lusitana. A mais tradicional delas é a Festa de São Tiago, realizada anualmente desde 1977 em uma mistura de rituais religiosos e a cavalhada, um teatro a céu aberto, recontando a guerra entre mouros e cristãos.

A Festa de São Tiago é mantém viva a conexão da cidade amapaense com sua origem africana (Foto Governo Amapá)
Depois de ter pedalado pela TransAmazônica em 2023, naquela que ele considera a mais intensa e desafiadora das suas cicloviagens, Nestor voltou ao Norte do Brasil este ano para visitar Mazagão Velho. Curiosamente, fez isso sem a bicicleta, pois ainda se recuperava de uma lesão na clavícula, lembrança de sua última viagem ao Japão.
“Foi um pedido do meu médico. Ele não me liberou. É com a bicicleta a minha melhor conexão com as pessoas. Ela sempre quebra o gelo ao chegar nos lugares, com as bolsas e tudo mais. Porém, o meu foco nunca foi o peda. A bicicleta me leva ao meu objetivo, que está nas relações, no povo, na cultura. Então, foi muito rico o contato no Amapá a pé. A memória e a cultura africana ainda são muito presentes naquela pequenina cidade”, diz Freire, que espera agora juntar esses laços com a expedição pelo Marrocos.
Personagem, Pedalada e Propósito
Nestor Freire traz uma bagagem única: faixas pretas em esportes de combate, formação em engenharia, experiência corporativa e uma crescente atuação como escritor e palestrante. O projeto Giraventura – que tem “Entre Selvas & Areias” como capítulo especial – iniciado em 2013, e desde então se tornou também um convite à reflexão.
Com seu estilo de viagem autosuficiente, acampando e cozinhando por conta própria, Nestor demonstra que o verdadeiro luxo está em cada encontro humano pelas estradas. “É claro que o planejamento da viagem é essencial. Mas eu insisto em um descompromisso com as métricas. Se for valioso para mim, passo mais dias em um determinado lugar, estendo até outro ponto. Tudo vale a pena nessa busca que eu considero filosófica sobre a relação do ser humano com o ambiente, as fronteiras e as próprias origens.”.
“AS MELHORES EXPERIÊNCIAS QUE EU TIVE FOI QUANDO EU ERREI O CAMINHO”, NESTOR FREIRE
Uma Trilha de Conhecimento e Inspiração
Em cada etapa, Nestor não apenas documenta cenários exuberantes, mas busca dialogar com habitantes locais, coletar depoimentos, registrar tradições e compartilhar essas histórias em livros (já são quatro publicados), mentorias e palestras. A filosofia do projeto é inspirar outros viajantes e aventureiros a explorar as próprias raízes e enxergar, nas diferenças, oportunidades de união e respeito.
Ver essa foto no Instagram
“Muita gente me pergunta se eu tenho um diário, como eu anoto os momentos que depois estarão nos livros. Entretanto, eu não vivo o momento pensando no que eu vou escrever. Uso apenas a minha lembrança. Quando muito, recorro ao Garmin para relembrar alguns checkpoints e contextualizar melhor”, explica.
Ao conectar as “selvas” da Amazônia às “areias” do Saara, “Entre Selvas & Areias” junta passado, presente e futuro, celebrando povos, lugares e saberes marcados pela resiliência diante dos desafios ambientais, históricos e humanos. Trata-se, contudo, de uma expedição que transcende o cicloturismo e resgata valores universais para todos que acreditam nas pontes invisíveis que ligam destinos distantes.
O dia-a-dia da viagem de Nestor Freire pelo Marrocos pode ser acompanhado aqui, aqui e aqui.
Leia também: Nestor Freire na lista dos melhores livros de cicloturismo